Na nota da autora, que antecede “A Arma Escarlate”, Renata Ventura explica e justifica sua missão. Segundo ela, J.K. Rowling respondeu a alguém que perguntou se ela escreveria um romance sobre uma escola de bruxaria nos Estados Unidos dessa maneira: “Não, mas fique à vontade para escrever o seu”.
Vamos começar pelo protagonista. Hugo Escarlate se chama, na verdade, Idá. Ao entrar na escola Nossa Senhora do Korkovado (que se localiza ‘dentro’ do Corcovado), o rapaz espontaneamente assume uma outra identidade. Com isso, já se percebe a primeira grande diferença entre ele e Harry Potter: Hugo não tem um nome no mundo bruxo para honrar.
Harry chegou a Hogwarts como uma estrela: o menino que sobreviveu, odiado por alguns e superprotegido por outros. O bruxinho britânico é um herói autêntico porque, a cada decisão que tomava, lembrava do legado de seus pais. Hugo não tem esse exemplo: seu pai fugiu quando ele era pequeno, sua mãe é uma boa pessoa, mas irresponsável. Quem ele admira realmente é sua avó, que tem um papel importante na narrativa.
Hugo é um anti-herói e isso tem a ver com o ambiente em que foi criado: num barraco no morro Dona Marta, sem dinheiro ou perspectiva, convivendo com a rotina perigosa do tráfico e testemunhando diversas injustiças. Enquanto Harry sofria ‘bullying’ de Duda, Hugo/Idá via pessoas queridas sendo ameaçadas, torturadas e mortas. É um mundo infinitamente menos cor-de-rosa do que a Rua dos Alfeneiros.
De qualquer maneira, tanto para Hugo quanto para Harry, a escola de bruxaria é um escape da vida horrível que levavam até então. Korkovado não tem separação de casas (“divisão é coisa da Europa”), mas segue um estilo de aulas e submissão às autoridades parecido com o de Hogwarts.
Hugo não tem um Rony, mas contra com os Pixies. Esse é o nome de um grupo que lembra um grêmio ou centro acadêmico universitário. Seus integrantes querem revolucionar o método de ensino, questionam a direção e os professores, protestam, são descolados e têm um respeito e influência sobre os outros alunos. Ao se juntar a esse grupo, Hugo se identifica rapidamente com Capí, que se torna seu melhor amigo. Sereno, íntegro e corajoso, Capí é uma espécie de irmão mais velho que faz Hugo olhar a vida com menos impulsividade e mais clareza.
A ‘Hermione’ é Gislene. Sabe-tudo, teimosa, intrometida, mas com plena consciência do que é certo, capaz de ter compaixão e de se sacrificar pelo bem dos outros. A amizade entre ela e Hugo é bem menos intensa e fraternal do que a de Harry e Hermione, mas a garota tem um papel fundamental no desfecho da trama.
Já o professor Atlas é o personagem que mais se aproxima de uma figura paterna para Hugo. Ele reúne a irresponsabilidade e instinto protetor de Hagrid com a sabedoria e o mistério de Dumbledore. Um Voldemort? Não há. O vilão de ‘Arma Escarlate’ é Caiçara, um dos traficantes do Dona Marta que tem uma ‘pendência’ especial com Hugo.
Sem querer revelar muitos detalhes da história, explico que Caiçara transmite todo o terror de uma pessoa normal com o poder de uma arma nas mãos. Ele chantageia, machuca, mata, sequestra e obriga Hugo a entrar em um caminho sem saída, no qual o protagonista acaba prejudicando muitas outras pessoas. Nesse momento, Hugo deve buscar sua bondade e decidir se ela significa colocar o bem geral acima do que é melhor para ele e seus amados.
O estilo de Ventura é direto, descritivo e empolgante como o de Rowling. Mas o maior mérito da autora foi saber usar as particularidades do Brasil para enriquecer sua trama, como a busca pelo ‘jeitinho’, o acordo fora das regras, a ‘queima de arquivo’. Questões que Hugo e todos os brasileiros enfrentam seja no mundo bruxo ou no real.